A vida
depois da internet é ostensiva. Até para os não iniciados. Sabendo o que
buscar, pode-se ter uma indicação do caminho a seguir.
Pois
eu prefiro ser como a Alice: ”se você não sabe para onde vai, qualquer caminho
serve”. Vou para onde o nariz apontar!
Sei...
Desde que alguém vire o seu nariz para a direção certa. Mas, como ia dizendo,
deixa eu conversar com o meu guia cibernético: vino, ruta, madri e enter.
O
google sempre vai responder alguma coisa. Com essa combinação de palavras deve
apresentar uns 500.000 resultados...
674.400
para ser mais precisa. Mas o que importa é que o primeiro endereço é Madrid
Rutas del Vino | Vinos de Madrid. Um clique e vamos descobrir onde estão os vinhos de Madri.
Deveriam
estar aqui em Madri! Talvez não tenha andado pelos lugares certos, mas só
encontro Rioja, Rueda, Ribera.
No
site descobriram que existe uma denominação de origem Madri, criada em 1992
para agregar os vinhos produzidos no entorno de Madri. Lá foram apresentadas às
regiões e suas respectivas bodegas. Nas páginas das bodegas, encontraram as
visitas e degustações que procuravam, e que deveriam, num mundo organizado e
civilizado, ser agendadas. Era o que deveriam fazer, se tivessem tempo. Mas não
havia tempo: partiriam de Madri no dia seguinte. Desânimo? Não! Apontaram seus
narizes para a tela do smartphone e escolheram uma bodega.
Vamos
sem marcar. Risco calculado. A pior situação: não nos receberem ou não
encontrarmos a bodega. Nesse caso conheceremos a cidade, a localidade, a plaza.
Sempre haverá uma Plaza, uma Catedral e um restaurante típico. Diversão
garantida.
Decidiram
ir para Navalcarnero – uma escolha quase aleatória, não fosse a cidade mais
próxima de Madri daquelas relacionadas no site das rotas de vinhos de Madri –
de ônibus, pois não queriam acrescentar as possibilidades decorrentes de
dirigir um carro num local que não conheciam ao tal risco calculado. Mapearam o
endereço da bodega Andrés Diaz no aplicativo maps do smartphone e partiram. Pouco
mais de uma hora depois estavam de frente para a Bodega Andrés Diaz, que estava
aberta. Entraram por uma grande porta, dessas que permitem a carga e a descarga
de caminhões. Marco não demorou a aparecer para atendê-las. Contaram de sua
recente descoberta dos vinhos de Madri e que vieram à Navalcarnero para
conhecer uma bodega dessa denominação de origem e provar seus vinhos. Marco,
atencioso, lhes disse que sua irmã Maria iria atendê-las. Gentil, argumentou
que ela, sua irmã, apresentava a bodega muito melhor que ele. Maria contou que
sua família produz vinhos há 5 gerações a partir de uvas de vinhedos próprios.
Sempre venderam a granel. E ainda vendem. Há alguns anos, ela e o irmão
decidiram assumir a bodega, introduzindo algumas melhorias no jeito de fazer
vinhos da família e passaram a engarrafar seus vinhos para poder distribuí-los
melhor. Na Bodega Andrés Diaz os vinhos são elaborados de forma espontânea e
natural, utilizando tanques de cimento para a fermentação, que é a maneira como
sua família sempre fez vinho. E nos explicou porque ainda usam cimento. O mosto
em fermentação num tanque de cimento, que tem um grau de porosidade, é
oxigenado em doses micro em função dessa porosidade, que é uma das condições
para dar uma boa estrutura para o vinho. O cimento dispersa o calor melhor que
o aço inox - eles ganham com a economia de energia para refrigeração.
Foram
para a parte mais alta do galpão, onde se acessam as bocas dos tanques de
fermentação. Maria destampou o tanque onde um mosto de garnacha fermentava,
afastou a camada de leveduras e encheu algumas taças de vinho. O vinho parecia
perfeito. Maria, cumprindo seu papel de dona da bodega, aproveitava para dar
uma boa analisada no vinho. As visitantes hipnotizadas com a experiência
emudeceram. Um contato em primeiro grau daquela natureza com o vinho exigia uma
nova palavra na língua portuguesa, como aquelas palavras gigantes que existem
em alemão para sintetizar o significado composto para uma única coisa. E as
visitantes disseram baixinho: torporprazerdescemacioexperiênciainesquecívelsabormaravilhosonãovouesquecerjamaischeirodeespanhaagoragarnachaéminhapreferidapossobeberatésemcomermascomcarnedeveserótimo.
Maria
compenetrada continuava a falar dos vinhos, das uvas. Diz que fazem vinho,
muito mais pelo conhecimento que tem da vida no campo e em bodegas, do que por
sua formação. Vão errando e acertando, aprendendo com o vinho a fazer vinho.
Ela fala da sua vida, que é a vida da
bodega, que é a vida da família. O que se ouve não é um discurso padrão encenado
para visitantes.
Depois
de beber os vinhos direto dos tanques de fermentação era a hora de bebê-los das
garrafas. E Marco e Maria abriram garrafas do
vinhos dÓrio Garnacha Cepas Viejas,
Tempranillo e Cabernet Sauvignon. Todos varietais -100% da casta. Este é
aquele momento da visita em que, espera-se, seja executado uma espécie de
ritual onde o vinho é analisado visualmente, olfativamente e gustativamente.
Mas isso não aconteceu. Quanto mais vinho era servido, mais ele deixava de ser
o protagonista para estar como coadjuvante nas taças que todos empunhavam. Como
um anfitrião elegante e discreto conectou seus convidados – as visitantes,
Maria, Marco – deixando que engrazassem suas falas numa conversa variada e
animada. Falaram da Espanha, de trabalhar em família, da rotina de uma bodega e
de como é conhecer um país através de uma garrafa de vinho. Na hora de partir,
beijos, abraços, e-mails e telefones trocados. O vinho da Denominação de Origem
Madri agora tem o rosto de Maria e Marco.
Para
prolongar uma pouco mais a experiência que tiveram na visita à bodega, as
visitantes foram experimentar a paleta de carneiro com o vinho Dório
Tempranillo. Almoçaram num restaurante que fica numa das muitas cuevas de
Navalcarnero.
No
ônibus de volta para Madri, antes que o sono as arrebatasse desse mundo,
guardaram cuidadosamente o smartphone, o instrumento que lhes permitiu não só
descobrir a bodega, mas chegar até ela.
A
tecnologia transformou a vida do viajante contemporâneo. Mas a motivação para
deslocar-se pelo mundo é a mesma de viajantes do passado: sentir, ao vivo, o que sentem as pessoas do lugar, beber o que
bebem, comer o que comem, andar e ver por onde andam. A tecnologia transformou
uma bodega familiar. Mas, na bodega familiar o vinho sempre terá a marca da
família. As visitantes aceitam seu legado de viajantes. Marco e Maria aceitam o
legado de sua família.
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